No verão passado - também durante uma viagem de férias -. renovei meu contato com um jovem de formação acadêmica, que logo constatei estar familiarizado com algumas de minhas publicações psicológicas. Nossa conversa recaiu - já não me lembro como - sobre a situação social da raça a que ambos pertencemos, e ele, impelido pela ambição, passou a lamentar-se por sua geração estar condenada à atrofia (segundo sua expressão), não podendo desenvolver seus talentos ou satisfazer suas necessidades. Concluiu seu discurso, de tom apaixonado, com o célebre verso de Virgílio em que a infeliz Dido confia à posteridade sua vingança de Enéias: “Exoriare…” Melhor dizendo, ele quis concluí-lo desse modo, pois não conseguiu fazer a citação e tentou esconder uma evidente lacuna em sua lembrança trocando a ordem das palavras: “Exoriar(e) ex nostris ossibus ultor.’’ Por fim, disse, irritado: “Por favor, não me faça essa cara tão zombeteira, como se se estivesse comprazendo com meu embaraço, mas antes me ajude! Falta alguma coisa no verso. Como é mesmo que diz, completo?”
“Ajudarei com prazer”, respondi, e dei-lhe a citação correta: “Exoriar(e) ALIQUIS nostris ex ossibus ultor.”
“Que tolice, esquecer essa palavra! Por falar nisso, o senhor diz que nunca se esquece nada sem uma razão. Gostaria muito de saber como foi que esqueci esse pronome indefinido, ‘aliquis‘.”
Aceitei o desafio prontamente, na esperança de conseguir uma contribuição para minha coleção. Disse-lhe, pois:
-Isso não nos deve tomar muito tempo. Só tenho que lhe pedir que me diga, sinceramente e sem nenhuma crítica, tudo o que lhe ocorre enquanto estiver dirigindo, sem nenhuma intenção definida, sua atenção para a palavra esquecida.
-“Certo; então me ocorre a idéia ridícula de dividir a palavra assim: a e liquis.”
-O que quer dizer isso?
-“Não sei.” - E o que mais lhe ocorre? - “Isso continua assim: Reliquien [relíquias], liquefazer, fluidez, fluido. O senhor já descobriu alguma coisa?”
-Não, ainda não. Mas continue.
-“Estou pensando” - prosseguiu ele com um sorriso irônico - “em Simão de Trento, cujas relíquias vi há dois anos numa igreja de Trento. Estou pensando na acusação de sacrifícios de sangue que agora está sendo lançada de novo contra os judeus, e no livro de Kleinpaul [1892], que vê em todas essas supostas vítimas reencarnações, reedições, por assim dizer, do Salvador.”
-Essa idéia não está inteiramente desligada do tema de nossa conversa antes que lhe escapasse da memória a palavra latina.
-“Exato. Estou pensando ainda num artigo que li recentemente num jornal italiano. Acho que o título era ‘O que diz Santo Agostinho sobre as mulheres’. Que entende o senhor com isso?”
-Estou esperando.
-“Pois agora vem algo que por certo não tem nenhuma ligação com o nosso tema.”
-Por favor, peço-lhe que se abstenha de qualquer crítica e…
-“Sim, já sei. Lembro-me de um magnífico senhor idoso que encontrei numa de minhas viagens na semana passada. Ele era realmente original. Parecia uma enorme ave de rapina. Chamava-se Benedito, se isso lhe interessa.”
-Bem, pelo menos temos uma seqüência de santos e padres da Igreja: São Simão, Santo Agostinho, São Benedito. Acho que havia um padre da Igreja chamado Orígenes. Além disso, três desses nomes são também prenomes, como Paul [Paulo] em Kleinpaul.
-“Agora o que me ocorre é São Januário e o milagre de seu sangue - parece que meus pensamentos avançam mecanicamente.”
-Deixe estar; São Januário e Santo Agostinho têm a ver, ambos, com o calendário. Mas que tal me ajudar a lembrar do milagre do sangue?
-“O senhor com certeza já ouviu falar nisso! O sangue de São Januário fica guardado num pequeno frasco, numa igreja de Nápoles, e num determinado dia santo ele se liquefaz milagrosamente. O povo dá muita importância a esse milagre e fica muito agitado quando há algum atraso, como aconteceu, certa vez, na época em que os franceses ocupavam a cidade. Então, o general comandante - ou será que estou enganado? será que foi Garibaldi? - chamou o padre de lado e, com um gesto inequívoco na direção dos soldados a postos do lado de fora, deu-lhe a entender que esperava que o milagre acontecesse bem depressa. E, de fato, o milagre ocorreu…”
-Bem, continue. Por que está hesitando?
-“É que agora realmente me ocorreu uma coisa… mas é íntima demais para ser comunicada… Além disso, não vejo nenhuma ligação nem qualquer necessidade de contá-lo”.
-Pode deixar a ligação por minha conta. É claro que não posso forçá-lo a falar sobre uma coisa que lhe seja desagradável; mas então não queira saber de mim como foi que se esqueceu da palavra aliquis.
-“Realmente? O senhor acha? Pois bem, é que de repente pensei numa dama de quem eu poderia receber uma notícia que seria bastante desagradável para nós dois.”
-Que as regras dela não vieram?
-“Como conseguiu adivinhar isso?”
-Já não é difícil. Você preparou bem o terreno. Pense nos santos do calendário, no sangue que começa a fluir num dia determinado, na perturbação quando esse acontecimento não se dá, na clara ameaça de que o milagre tem que se realizar, se não… Na verdade, você usou o milagre de São Januário para criar uma esplêndida alusão às regras das mulheres.
-“Sem me dar conta disso. E o senhor realmente acha que foi essa expectativa angustiada que me deixou impossibilitado de reproduzir uma palavra tão insignificante como aliquis?”
-Parece-me inegável. Basta lembrar sua divisão em a-liquis, e suas associações: relíquias, liquefazer, fluido. São Simão foi sacrificado quando criança; devo continuar, e mostrar como ele entra nesse contexto? O senhor pensou nele partindo do tema das relíquias.
-‘’Não, prefiro que não faça isso. Espero que o senhor não leve muito a sério esses meus pensamentos, se é que realmente os tive. Em troca, quero confessar que a dama é italiana e que estive em Nápoles com ela. Mas será que tudo isso não é apenas obra do acaso?”
-Tenho que deixar a seu critério decidir se todas essas relações podem ser explicadas pela suposição de que são obra do acaso. Posso dizer-lhe, no entanto, que qualquer caso semelhante que você queira analisar irá levá-lo a “acasos” igualmente notáveis.
A situação dever ser interpretada da seguinte maneira: o falante vinha deplorando o fato de a geração atual de seu povo estar privada de seus plenos direitos; uma nova geração - profetizou ele, como Dido - haveria de vingar-se dos opressores. Nisso ele expressara seu desejo de ter descendentes. Nesse momento intrometeu-se um pensamento contraditório: “Você realmente deseja descendentes com tanta intensidade? Isso não é verdade. Quanto não lhe seria embaraçoso receber agora a notícia de que espera descen-dentes do lugar que você sabe? Não: nada de descendentes… por mais que precisemos deles para a vingança.”
Fonte: Obras Completas Sigmund Freud: Edição Standard. Vol. VI - Sobre a psicopatologia da vida cotidiana